Este é o início de uma secção sobre livros de SciFi que nunca foram adaptados a cinema mas que poderiam resultar em excelentes filmes. A relação entre romances e cinema nos géneros do terror e da ficção científica é já muito antiga. Frankenstein de 1910, Dr. Jekyll and Mr. Hyde de 1912 ou o Golem de 1915 são os primeiros exemplos mais famosos. Pelo menos estes estão livres da camisa de forças cultural que é o copyright e podem ser vistos (aqui, aqui e aqui).
Muitos autores seminais do género, como Edgar Allen Poe ou Lovecraft, Mary Shelley ou Bram Stoker, têm sido adaptados repetidamente para filme. O mesmo aconteceu na SciFi, desde os clássicos de Júlio Verne ou H.G.Wells. Alguns autores têm sido muito adaptados, em detrimento de outros, havendo uma forte tendência na escolha de autores de língua inglesa.
Stanislaw Lem é um autor polaco de SciFi, cuja maior parte da sua obra decorreu entre os anos 60 e 80. Autor de excelentes histórias, a mais conhecida é Solaris, duplamente adaptada ao cinema por Andrei Tarkovsky e Steven Soderberg. Os enredos de Lem focam principalmente as questões do conhecimento e da comunicação entre diferentes espécies inteligentes (até em Solaris é esse o tema de fundo, onde a trama se desenvolve). Normalmente, Lem é pessimista. Ele considerava que demasiado nos separa para que uma comunicação efectiva, com algum significado, se estabeleça. Um livro exemplar desta dificuldade é Fiasco, uma das suas últimas obras de ficção (e publicada pela Europa-América na colecção Nébula).
Mas, se exceptuarmos a Polónia, Lem não tem servido de inspiração para cineastas. Há uma série alemã sobre as aventuras de Ijon Tichy, as referidas adaptações de Solaris e praticamente mais nada. Um dos livros que melhor se adaptaria ao cinema é "Niezwyciezony", conhecido aqui como "A Nave Invencível" título da edição portuguesa da colecção Argonauta (nº264).
Claro que os posts desta secção são apenas um motivo para vos levar a ler os respectivos livros. Mas talvez vos convença que, se bem feito, esta história daria um excelente filme de SciFi. Se Lem em vez de polaco fosse americano, creio que já teríamos uma adaptação para livro (e eventual remake). Injusto, mas as coisas são como são...
O romance começa com um cruzador de guerra terrestre a aterrar no planeta Regis III . O objectivo da missão é investigar o desaparecimento da sua nave irmã, Condor. O planeta parece desabitado, deserto, sem vida, o que adensa o mistério. As naves em questão são extremamente poderosas e, se fosse um inimigo a razão da sua destruição, este teria de ser muitíssimo perigoso.
No decorrer do livro a tripulação percebe que existe, de facto, um perigo à superfície do planeta. Só que não é vivo, nem é propriamente um inimigo. O planeta está infectado por enxames de nano-máquinas que destroem tudo o que se lhes depara à frente. E à sua frente encontra-se uma nave invencível para derrotar. A segunda.
O livro discute a questão da nanotecnologia, em 1964, antecipando em muito, na ficção, este tema tecnológico. Hoje em dia é comum encontrar nanotecnologia em filmes e romance. Por exemplo, o remake do The Day The Earth Stood Still usa enxames de nano-máquinas como arma de destruição, outros filmes recentes são I, Robot, Doom ou Terminator 3. Nos romances, talvez o mais conhecido seja Prey de Michael Crichton, havendo também o The Diamond Age do escritor cyberpunk, Neal Stephenson. O jogo de computador Crysis usa bastante este conceito. Mas pouco ou nada disto se falava em 1964.
Lem discute a possibilidade do planeta ter assistido ao que, hoje em dia, se chama uma Singularidade Tecnológica. Normalmente imagina-se esta situação com o advento de uma inteligência artificial mais inteligente que o Homem. Esta IA é então capaz de criar outra IA ainda melhor, e assim sucessivamente, até que a Humanidade perde totalmente o controlo da situação e é ultrapassado por uma gama de acontecimentos exponencialmente mais rápidos (e provavelmente acaba mal). Mas existe a possibilidade de isto ocorrer através de robots tão simples como bactérias. Este processos também podem ultrapassar os seus criadores orgânicos, porque possuem a capacidade de auto-replicação e podem, supõe-se, evoluir de forma Lamarckiana, ou seja, usando a experiência como padrão para criar a próxima geração.
Isto significa que a evolução natural é acelerada milhões de vezes, tendo uma quase ilimitada capacidade de adaptação. E essa característica pode permitir vencer a batalha contra os seus criadores, até contra robots maiores e individualmente mais poderosos. Como vencer um vírus que, em comunicando com os seus vizinhos, decide como evoluir?
Ambas as situações são exemplos da Lei das Consequências não Antecipadas, que basicamente diz ser impossível prever os eventos produzidos por um sistema suficientemente complexo. Um filme que usa esta temática é o Jurassic Park de Spielberg (adaptado de um outro livro de Crichton).
A questão da auto-replicação mecânica é um assunto estudado desde o trabalho de John von Neumann sobre autómatos replicantes na década de 40, e tem dado pequenos passos desde então. Uma das possibilidades para a futura exploração espacial seria enviar sondas para outros sistemas solares e, quando lá chegassem, criariam, a partir dos recursos locais, cópias de si mesmas para serem enviadas para os sistemas vizinhos. Desta forma, dado suficiente tempo, poderia ser possível explorar a galáxia com impacto económico mínimo.
Mas voltando ao livro. Num dos capítulos mais cinematográficos, o comandante da nave decide enviar a sua unidade de combate mais poderosa para lutar contra o enxame, o enorme robot de guerra, Ciclope, com praticamente ilimitado poder de fogo (mas não suficiente, suspeito, para derrotar a situação financeira portuguesa).
Quando o enxame detecta Ciclope, começa uma batalha de enormes proporções. O robot é capaz de destruir biliões de unidades individuais, mas os tripulantes da nave observam com apreensão o aparecimento de nuvens e nuvens de mais nano-máquinas. São triliões e triliões de unidades individuais que sobrecarregam as armas de Ciclope até ele se descontrolar e tornar-se caótico, pondo em perigo até a integridade da própria nave, que se vê obrigada a destruí-lo (aqui há traços literários do velho monstro Frankenstein e de como a tecnologia se pode virar contra o seu criador).
Por fim, a tripulação percebe que este inimigo não é um inimigo. O que eles estiveram a lutar foi contra o actual ecossistema do planeta e que, assim, aquela luta não tinha qualquer sentido. No Moby Dick, Herman Melville diz-nos que não faz sentido uma pessoa vingar-se de um animal. O mesmo se pode dizer de um enxame.
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