sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Henry: Portrait of a Serial Killer (1986)

O filme começa com uma espécie de currículo de um assassino. Um conjunto de cadáveres femininos, dispostos de formas distintas, mortes diversas, nelas uma insinuação de abuso sexual. É-nos apenas apresentado o quadro final, imóvel, restando dos actos ecos sonoros, quase indistintos, do que aconteceu.


Henry (Michael Rooker: Mississippi Burning, The Walking Dead) é um zé-ninguém, com cadastro criminal e pouco dinheiro mas cuja actividade principal é matar indiscriminadamente. Percorre as ruas num carro velho à procura de uma fraqueza, de uma mulher isolada, da sua oportunidade de caça.


Henry faz trabalhos avulsos para obter algum dinheiro e partilha um apartamento com Otis (Tom Towles: The Devil's Rejects, NYPD Blue) que conheceu na prisão. Otis, em liberdade condicional e também sujeito a trabalhos ocasionais, foi buscar ao aeroporto a sua irmã Becky (Tracy Arnold), fugida de uma relação amorosa falhada e violenta, que decidiu tentar a sua sorte em Chicago, a cidade onde Henry e Otis vivem.

Becky vai morar com ambos e começa a simpatizar com a personagem aparentemente calma e recatada de Henry, cuja estabilidade emocional sabemos já ser, no mínimo, duvidosa. Becky, como parte de uma família muito disfuncional (por exemplo, há uma tensão sexual de Otis em relação à irmã), interpreta mal os problemas de Henry, e começa a forçar uma aproximação mais íntima.

Por uma questão fortuíta, Otis e Henry matam um comerciante e Henry inicia Otis no seu vício de morte. O filme prepara-nos para o começo de uma espiral de violência que deixará marcas irreversíveis nas relações daquelas três pessoas.

Realizado por John McNaughton (que realizou Push, Nevada, uma série inspirada em Twin Peaks e prematuramente cancelada) com um orçamento mínimo e o objectivo culturalmente elevado de «fazer um filme de monstros com muito sangue» a pedido da produção. Apesar disso, foi capaz, juntamente com o argumentista Richard Fire, de fazer um belíssimo filme de serial killers. Este filme é baseado num assassino real, Henry Lee Lucas.

A noção de serial killer é uma fenda na vida segura e racional das democracias modernas. Podemos proteger-nos de diversas formas de assaltos a casas ou a carros. Sabemos que se andarmos com poucos sinais exteriores de riqueza e escondermos as nossas posses, podemos minimizar este tipo de problemas. Sabemos que se não andarmos por zonas mais violentas ou isoladas é mais difícil nos acontecer algo de mal. No fundo há em nós uma crença que se controlarmos as causas mais típicas que levam ao crime, estamos relativamente protegidos. porque evitamos os motivos do crime. No entanto, um serial killer é um agente com uma motivação própria, sem razão aparente, tornando qualquer um, um potencial meio para os seus fins.

Apesar disso um serial killer tem um MO, um modus operandi, ele segue uma qualquer bizarra e obscura narrativa que internamente faz sentido. Num serial killer (pelo menos segundo os profilers e os escritores do género) ainda há, assim, uma racionalidade escondida, algo que podemos descobrir para sabermos se somos alvos do seu acto predatório ou até mesmo para o capturar. Por um lado, isto é natural porque o ser humano procura padrões mesmo onde eles não existem. Seja o assassino, seja o polícia que o pretende capturar, seja o jornalista ou cineasta que o quer entender, há sempre uma tendência para racionalizar a sequência de mortes que se lhes depara. No caso do serial killer isso pode transparecer num ritual que serve de assinatura; para o profiler existe a psicanálise ou o mastigar de dados estatísticos (que, no mundo real, não produz resultados mas, enfim, no cinema temos o conforto do «parece que funciona»).

No caso de Henry, isso não acontece. Ele deliberadamente percebe essa ânsia pelo padrão das forças da lei, e vai exactamente no sentido inverso. Ela mata sempre de forma diferente, com armas diferentes, tentando nunca se repetir. O que lhe interessa é o acto de matar. Não estão apenas em perigo um determinado tipo de mulheres. Ele mata homens também. Ele mata pessoas sem planear nada, num dado momento, sem pré-aviso, quando lhe apetece. E isso é ainda mais aleatório, mais assustador. Lembro-me de apenas um outro filme que refere um serial-killer assim, Suspect Zero (2004), mas onde a presença do assassino se remete para o pano de fundo da narrativa. Aqui, Henry é o personagem principal.

Pressentimos em Henry que existem traumas de infância, ou pelo menos a necessidade dele de acreditar nisso. Henry diz a Becky que matou a mãe (como dissera a Otis, na prisão), mas contradiz-se três vezes na forma como a matou. Assim, como ter certeza deste facto? Ou que a mãe lhe causou os referidos traumas? Talvez seja a forma de Henry racionalizar parte do seu comportamento formulando um rascunho de biografia nunca concluído. Apesar disso, não se lhe nota qualquer hesitação, qualquer problema moral em matar repetidamente. Uma das cenas mais arrepiantes, a fazer lembrar A Laranja Mecânica de Kubrick, é quando Henry e Otis filmam-se a matar uma família e depois vêm e revêm em casa a odiosa filmagem na televisão obrigando o espectador a ser também plateia deste filme dentro do filme (e aqui reside uma possível crítica ao facto deste tipo de narrativa ser usado como diversão pela indústria do cinema; ou até para escrever postas em blogues, coff coff).
O facto de termos um serial killer como personagem principal é raro no cinema. Depois da estreia de Dexter, este facto não parece tão original, mas convém lembrar que o filme é de 1986, vinte anos antes da série com Michael C. Hall a personificar o simpático assassino de serial killers de Miami. Anterior a Henry posso apontar clássicos como Psycho (1960), com o famoso Norman Bates, The Night of the Hunter, com uma exibição memorável de Robert Mitchum, a excelente comédia negra Arsenic and Old Lace (1944) de Frank Capra com Cary Grant, o muito bom Peeping Tom (1960) de Michael Powell ou L'assassin habite... au 21 (1942) do Hitchcock francês, Henri-Georges Clouzot (vejam os filmes dele que não se arrependem). Deixo ainda o conselho para verem um bom filme holandês de 1988 chamado Spoorloos (que sofreu um remake americano, com Kiefer Sutherland, chamado The Vanishing; normalmente quando Hollywood faz um remake é sinal para se ir ver o original e esquecer o remake...). Querem outro exemplo? Funny Games (1997) de Haneke, um filme arrepiante deste género também com remake americano. Ah! E não se esqueçam do primeiro filme com o Hannibal Lecter, Manhunter de Michael Mann e também de 1986.

Hoje em dia é muito comum a temática do serial killer tanto em filmes (Silence of the Lambs, Se7en, American Psycho, Zodiac etc.) como em séries (os dois primeiros anos do excelente Millenium de Chris Carter e com o grande Lance Henriksen, o assim-assim Criminal Minds, a excelente e misteriosa personagem chamada Red John na série mediana The Mentalist). Mas há escassas duas décadas ainda era uma pedrada no charco. Henry demorou quatro anos a ser distribuído, tendo a sua estreia ocorrido apenas em 1990. Isto costuma ser um sinal que o filme em questão é culturalmente interessante.



Imdb: http://www.imdb.com/title/tt0099763/

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